Afastam-me de mim. Levam-me para o lugar de
dentro que não sei conhecer. Que não quero saber dizer. Se me perguntas onde
estou, olho-te e, sem resposta, abandono-te. O teu olhar sobre o olhar de uma
rapariga sem nome, sem língua ou boca que te satisfaça esse imperativo de
curiosidade alheia. — Como és fácil, apetece-me dizer-te, enquanto acendo o
cabelo à luz que trespassa a persiana. Uma mão fecha-se à porta da minha boca;
só a língua dominicana sabe os salmos que são precisos para me sagrar a
garganta enquanto tomo comprimidos com sabor a vermelho. São só páginas de um
livro, finíssimas, que me forram o estômago com ditames de profetas só para que
a água, ao ser bebida, não derive em dilúvio. Não posso diluviar assim. Não
posso diluviar pelos hábitos dos outros, os desejos dos outros, os medos dos
outros, as razões as palavras os gritos dos outros. E, deus, que se existisses
livrar-me-ias deste peso no estômago; desta secura de boca a que nem salmos nem
pregos podem salvar. Por isso os prefiro a ti. Os meus comprimidos, que me
afastam de mim e me levam a um lugar de dentro que não sei por que nome chamar
mas que, se deus soubesse, me diria que recriei sobre as lágrimas de todos os
santos um mar tão humano que é capaz de se pensar e pensar na forma que tem a
palavra e o interior da palavra a ser de uma só vez tomada. Piedade. Sem
pássaros, sem penas, longe dos perigos da insalubridade mental, moral e
fisicamente humana de que casas são só sentenças impiedosas. Piedade, digo, sem
salmos que me humedeçam a boca ou páginas de livros sacros que me forrem o
estômago. Piedade, o lugar dentro de mim que me dá nome suficiente para todo
este tempo em que serei mulher à beira da cabeceira, mulher balouço ou, tão
simplesmente, olhar sem esquecimento. Que da minha mortalidade vos digo que é
possível deus esquecer-se de nós. Mas eu, que sou apenas carne seca exposta ao
sol, aninhada à chuva, não vos esquecerei: Aos justos, aos injustos, aos puros,
aos ímpios. No lugar que há dentro de mim. A que só a ausência de deus poderia
dar luz.
É Quase Noite (Averno 061)